A consciência moral

Muitas vezes o ser humano é capaz de fazer mal a outros sem sentir peso na consciência. A partir dessa e outras observações, Bert Hellinger entendeu como funciona a nossa consciência. Suas descobertas contrariam o senso comum.

Ele descobriu que a consciência leve, ou boa consciência, tem o efeito de criar as condições para muitos conflitos graves e tragédias

A consciência 

Hellinger compreendeu como funciona a nossa consciência moral e descobriu a existência de uma outra consciência, que chamou de consciência arcaica. Nesse artigo vamos tratar apenas da consciência moral, um tema muito importante, base das constelações familiares, que é retomado e aprofundado em praticamente todos os seus livros. Hellinger analisou a consciência humana sem inocência pueril e, ao mesmo tempo, sem perder-se num niilismo vazio. 

“No início dos anos oitenta, comecei a investigar cuidadosamente o que acontece quando as pessoas alegam estar seguindo a própria consciência. Verifiquei, então, que muitos que apelam para ela dizem e fazem coisas que humilham e prejudicam os outros. Observei, assim, que a consciência não está somente a serviço do bem, mas igualmente, do mal.” Bert Hellinger, No centro sentimos leveza. Cultrix, 2006, p. 11-12. (1ª Ed. em alemão em 1996).

É comum termos atitudes ou ações prejudiciais e, ainda assim, manter a consciência limpa. Por exemplo: “sou super sincero, por isso vou te falar umas verdades”, “me vinguei porque ele mereceu”, “o mercado é uma selva, se eu não fizer, outros vão fazer”, “filho, bato em você pra te educar”, “um cara desses, só matando”, “eu sou doente, na minha família todos são doentes”. Muitas vezes também punimos a nós mesmos por meio de doenças, fracassos ou tragédias, inconscientemente, como expiação por termos feito algo que agride nossa consciência. 

Mas de onde vem a consciência? O que é essa voz interior? 

“Sentimos nossa consciência como consciência leve e como consciência pesada, como culpa e inocência. Muitos acreditam que isso tem a ver com o bom e mau, mas não tem. Tem a ver com a ligação à família e separação desta. Através da consciência, todos  sabem, instintivamente, o que devem fazer para pertencer. Uma criança sabe instintivamente o que deve fazer para pertencer. Ao se comportar de maneira correspondente, tem a consciência limpa.” Bert Hellinger, Olhando para a alma das crianças. Atman, 2016, p. 96. (1ª Ed. em alemão 2013)

Isso quer dizer que a nossa consciência tem a ver com os nossos relacionamentos, os nossos vínculos sistêmicos, conscientes e inconscientes.

“A consciência é o órgão que percebe o equilíbrio sistêmico e nos ajuda a saber se estamos ou não em harmonia com o nosso sistema de referência. (…) Descobri que consciência leve significa unicamente o sentimento de que estou habilitado a continuar pertencendo ao sistema. Consciência pesada nada mais é que a inquietação de deixar de pertencer ao sistema.” Bert Hellinger, A simetria oculta do amor. Cultrix, 2014, p. 132. (1ª Ed. em alemão 1998).

Origens da consciência: a sobrevivência tribal

A nossa consciência é uma ferramenta extremamente útil, tem a importância de garantir nossa sobrevivência. Por exemplo, uma criança se sente segura quando sente que é aceita e amada na família, pois ser rejeitada significaria a morte para ela – diferente de um adulto, ela não tem condições de sobreviver sozinha. Por isso, molda sua consciência de forma a seguir a consciência da família, do grupo a que pertence, ou de alguém da família por quem sinta um amor especial.

Atualmente, um adulto pode escolher seu grupo de relações sociais, e pode inclusive escolher viver de maneira mais ou menos independente. Ao longo da evolução da humanidade, no entanto, a sobrevivência só era possível na tribo ou no povoado a que o indivíduo pertencia. Ser rejeitado ou expulso da tribo significava uma sentença de morte: na prática, seria impossível sobreviver sozinho às feras selvagens, a ataques de tribos inimigas, além das dificuldades para alimentar-se e abrigar-se. Esta é a origem da necessidade que sentimos de seguir o grupo, de imitar, bem como do medo e da culpa ao sermos diferentes e rejeitados. Percebemos essa consciência pelos sentimentos de inocência ou culpa. “Ela se originou antes que o indivíduo pudesse se diferenciar e seguir uma consciência pessoal. É a consciência de um grupo.” Bert Hellinger, A fonte não precisa perguntar pelo caminho. Atman, 2012, p. 219. (1ª Ed. em alemão 2002).

“Durante milhares de anos vivemos em um mundo dual em que era necessário lutar. A tribo forjou a consciência moral como arma a serviço da sobrevivência de um grupo graças ao aniquilamento dos grupos rivais.” Brigitte Champetier de Ribes, Los desafíos de la vida actual. Gaia Ediciones, 2019, p. 78. (Tradução própria).

Hellinger conseguiu explicar porque é perigoso seguir cegamente a consciência. Para não causar dano aos outros, às vezes é necessário ter a coragem de contrariar o grupo ao qual pertencemos, mesmo sentindo a consciência pesada em relação a esse grupo – atento para o fato de que o próprio grupo pode se voltar contra aquele que pensa diferente. Porque esse tema foi tão relevante para Hellinger? Vale lembrar das fortes vivências que marcaram suas reflexões por toda a vida. Hellinger foi convocado aos 17 anos de idade para lutar na Segunda Guerra Mundial ao lado dos nazistas. Mais tarde, foi sacerdote missionário na África do Sul durante o período do Apartheid. Assim, Hellinger observou que “muitas vezes cometemos ações más com boa consciência e ações boas com má consciência.” Bert Hellinger, No centro sentimos leveza…  p. 62. 

Ou seja, quando se trata de grupos em oposição, a consciência moral nos autoriza a tratar o outro como inimigo, inferior, mau, levando-nos a desprezar, perseguir e até aniquilar outros seres humanos. E tudo isso sentindo a nossa consciência leve, com boa consciência, ou seja, justificados pela nossa consciência.

Diferentes consciências

Diferentes grupos têm consciências diferentes, cada família, povo, cultura, religião, agremiação política, etc, segue regras diferentes.

“Todas as famílias são diferentes. O que é considerado bom em uma família é considerado mau em outra e vice-versa. Por isso, membros de outras famílias fazem com consciência leve o que, para minha família, é considerado mau.” Bert Hellinger, Olhando para a alma das crianças… p. 40.

Muitos conflitos de casal têm origem na consciência familiar. Um dos obstáculos para uma família feliz é: “O fato de o homem e a mulher virem de famílias diferentes. Ambos são vinculados a suas famílias, incondicionalmente, através de suas consciências. O homem quer converter a mulher à sua consciência e a mulher quer converter o homem à sua consciência. As brigas de casal geralmente são brigas entre duas consciências diferentes.” Bert Hellinger, Olhando para a alma das crianças… p. 244. 

Para além do âmbito doméstico, nos conflitos sociais também vemos os choques entre diferentes consciências.

“Como missionário também pensava que tinha que ajudar aos ‘pobres pagãos’. Pude ver até que ponto e de que maneira a ajuda surtia efeito, e como era perigoso se eu não estivesse em sintonia com o outro; Sobretudo, se não fosse unida a um grande respeito perante os demais”. Bert Hellinger, Reconocer lo que es, Herder, 2000, p. 62 (1ª Ed. em alemão 1999). (Tradução própria).

Até a doença, que é algo que causa sofrimento e pode levar à morte, pode ser sentida como boa. Por causa da nossa consciência, podemos experimentá-la sentindo a inocência de um seguidor fiel. 

Hellinger explicou isso ao comentar uma constelação feita num de seus cursos:

“A má consciência, que experimentamos como oposta à boa consciência, não é por si só má, somente a sentimos como má (…). 

Pois então, pudemos ver no exemplo que eu apresentei que esse médico está doente com boa consciência. Senão não poderia estar tão feliz. Portanto, nessa felicidade ele se sente ligado a alguém pelo amor, com os mortos da sua família e, talvez, com a sua avó, que morreu cedo.  Aqui se mostra um amor profundo e esse amor é sentido como uma boa consciência.

Portanto, nesse contexto é a boa consciência que colabora para causar a doença, que a condiciona e a mantém. Se ele agora se voltasse contra a doença e fizesse tudo para voltar a ter saúde, talvez não se sentisse mais tão profundamente ligado a sua avó como através da enfermidade. Quer dizer: a saúde seria para ele ligada à má consciência. Então, para tornar-se sadio, ele deveria ultrapassar as fronteiras de sua consciência. Entretanto, isso exige um desenvolvimento pessoal radical.” Bert Hellinger, A fonte não precisa perguntar pelo caminho… , p. 157.

“Essa consciência varia de grupo para grupo. Ela varia até mesmo de pessoa para pessoa. Por isso, temos consciências diferentes perante o pai e perante a mãe, e consciências diferentes no trabalho e em casa. Ou seja, a consciência se modifica constantemente, pois a percepção do que temos que fazer para pertencer também é variável (…).

Essa é uma das consciências, a consciência que sentimos. Através dessa consciência, distinguimos entre bom e mau, mas sempre em relação a um determinado grupo.” Bert Hellinger, Olhando para a alma das crianças… p. 96

Dilemas da consciência

Por ser múltipla, e não unitária, nossa consciência nos coloca diante de dilemas para decidir que atitude tomar, que caminho escolher. No fundo, sempre se trata de decidir entre continuar seguindo regras, padrões, comportamentos  já estabelecidos ou atrever-se a fazer um pouco diferente.

“Contudo, também no próprio indivíduo e dentro do mesmo grupo, a consciência está a serviço de fins que ora se completam e ora se contradizem, por exemplo, o amor e a justiça, a liberdade e a ordem… Portanto, experimentamos a culpa e a inocência de modos diferentes, conforme estejam a serviço do amor e do vínculo ou da justa compensação. E também as vivenciamos de modos diversos, conforme sirvam a ordens e regras ou à renovação e à liberdade.” Bert Hellinger, Ordens do amor, Cultrix, 2007, p. 166. (1ª Ed. em alemão 2001).

Geralmente, solucionamos os dilemas da nossa consciência escolhendo um lado, por assim dizer. Ou, alternativamente, tentando seguir as principais regras, costumes ou valores que reconhecemos como importantes, ainda que vivendo certas contradições. Hellinger criou uma analogia que explica isso claramente. Segundo ele, a inocência e a culpa “assemelham-se a um general que, em diversas frentes, com diversas tropas, em terrenos diversos, com diferentes meios e táticas, busca diversos êxitos e no final, em função de um todo maior, só permite êxitos parciais em todas as frentes.” Bert Hellinger, Ordens do amor… p. 167.

Baixar a consciência do céu à terra

A consciência é algo superior, algo espiritual? Hellinger mostrou que não.

“Também podemos observar isso, quando um animal, por exemplo um cachorro, fica com má consciência ao perceber que, através de seu comportamento, colocou em jogo o seu direito de pertencimento. Ou seja, essa consciência é um instinto, um instinto útil que nos ajuda a perceber, a todo momento, até que ponto ainda temos ou não o direito de pertencer. É um instinto de sobrevivência. Sem essa consciência não poderíamos sobreviver. Este é o seu lado positivo, de importância vital. Ao mesmo tempo, ela possui efeitos perigosos para a nossa convivência humana. Através de nossa boa consciência, decidimos quem pode ou não pertencer à nossa família, no sentido restrito e amplo.” Bert Hellinger, A cura. Atman, 2014, p. 29  (1ª Ed. em alemão 2011).

Por dizer assim, baixei a consciência do céu à Terra. Porque vi de repente que a consciência é um instinto e não algo espiritual.  Um cachorro também tem consciência. Já observaram que um cachorro também tem às vezes má consciência?  Ou seja, a consciência é algo instintivo, só se encontra em grupos ou manadas (…). Se podemos fazer parte, nos sentimos felizes e inocentes. Esse é, no fundo, o desejo mais profundo de todas as pessoas: fazer parte. Por isso, não existe nenhuma desgraça maior do que ser excluído.

Como castigamos os delinquentes? Mediante a exclusão, claro. Os metemos na prisão ou os matamos.Bert Hellinger, Felicidad que permanece. Ridgen Institut Gestalt, 2018, p. 91. (1ª Ed. em alemão 2006). (Tradução própria)

Hellinger diz que há uma inviolabilidade da consciência na cultura ocidental, mesmo entre filósofos tão proeminentes como Kant e outros iluministas de destaque. Isso se deve, em parte, pela afirmação de que a consciência representa a voz de Deus em nós, a qual temos que obedecer, em todas as circunstâncias. E continua:

“As consequências tão sérias dessa afirmação se mostram no fato de que, nos grandes conflitos, que para muitos seres humanos são mortais, ambas as partes busquem aniquilar o outro e permaneça a boa consciência, sem compaixão humana e sem respeito.” Bert Hellinger, El amor del espíritu. Rigden Institut Gestalt, 2009, p. 13. (1ª ed. em alemão 2008). (Tradução própria).

Como se dar conta da consciência moral

Quanto mais alguém age de maneira impulsiva ou entusiasmada, mais está seguindo cegamente uma consciência que lhe sussurra o que é bom e o que é mau, certo e errado, e lhe diz o que fazer em cada situação, em relação a diferentes pessoas. Quando se trata de grupos, isso se intensifica e se observa o “efeito manada”, como se diz.

Hellinger não analisou qual consciência – ou qual conjunto de regras, costumes, valores – é a melhor, nada disso! Descobriu que quando uns se consideram melhores que outros, geralmente causam dano – e com a consciência limpa, justamente porque se consideram superiores. Quando entendemos isso, conseguimos entender a nós mesmos, nossas fidelidades, percebemos onde está nossa arrogância e presunção – e também a dos outros. Justamente quando achamos ser melhores, é quando podemos prejudicar os outros, pois perdemos o respeito pelo outro, como ele é.

A reconciliação e a pacificação não resulta da imposição de um ponto de vista, e sim do reconhecimento profundo de que todos somos igualmente humanos. Expandir os limites da própria consciência significa atuar levando em consideração outros pontos de vista, com respeito, por mais que sejam diferentes do meu.

Mas o que dizer das pessoas que cometem atos terríveis? Mais ainda: como podemos nos dar conta dos atos prejudiciais que nós mesmos cometemos com a consciência tranquila? 

“Posso compreender aquele que percebe dentro de si objeções ao que digo, como: ‘Mas, o que acontece com aqueles que…’, contudo ele pode comprovar dentro de si, até que ponto se sente melhor do que outros e até que ponto os rejeita em seu íntimo. Então, sentirá de imediato que se movimenta sob o poder da consciência.

Eu o convido a perceber em seu corpo, o que acontece no seu coração, quando se agarra a essa diferenciação e o que muda, quando se deixa levar por um outro movimento, um movimento do espírito [o termo espírito representa aqui um amor universal], dedicado a tudo tal como é, também a você, e o que muda em seu corpo e seu entorno quando segue esse movimento. Você deixa, por um certo tempo, essas diferenciações em suspenso, nem a favor nem contra. Você também pode perceber o que muda na sua profissão ou na sua empresa e na sua força interior.” Bert Hellinger, Êxito na vida, êxito na profissão, Atman, 2011, p. 24 (1ª Ed. em alemão 2010).

Expandir a consciência

Mas e as diferenças? É possível conciliar as diferentes consciências? No nível da consciência estritamente, não, pois a identidade de um grupo só existe porque se diferencia em relação a outros grupos – e muitas vezes, uns lutando contra os outros.

Num nível mais profundo, contudo, é possível reconciliar e encontrar a paz, no nível em que as constelações atuam: o da nossa humanidade intrínseca. Quando simplesmente vejo a cada um com respeito por sua dignidade humana, consciente das fidelidades, dores e limites de cada um, vejo que todos são seres humanos, imperfeitos – assim como eu.

Quando alguém se libera das fidelidades cegas aos grupos a que pertence e expande a consciência para reconhecer-se como um ser humano igual a todos os demais – nem melhor nem pior, nem mais nem menos importante – sintoniza com tudo e todos de maneira harmoniosa. Então surgem soluções criativas, originais e conciliadoras para os dilemas e conflitos

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