Para Bert Hellinger, isto ficou muito claro: não somos apenas indivíduos, cada um é parte de um sistema (ou rede) familiar – e de outros sistemas – e cada um tem um lugar específico em cada sistema do qual participa. Ao mesmo tempo, cada pessoa reúne, inclui, integra o sistema todo em si mesma.
Os sistemas unem e orientam seus membros de acordo com determinadas “regras”, ou seja, as ordens ou forças do amor, que foram compreendidas e explicadas por Bert Hellinger. Nesse artigo vamos compreender o que são os sistemas e ver exemplos de algumas dinâmicas ocultas profundas dos relacionamentos. No próximo artigo, vamos compreender as ordens, ou forças, do amor.
Sistema
Desde os anos de 2002, 2003, Bert Hellinger estava desenvolvendo sua compreensão sobre o que é o sistema familiar, que nesse período também chamava de “Consciência inconsciente familiar” e “alma familiar”. Brigitte Champetier de Ribes, Las fuerzas del amor, Gaia Ediciones, 2018, p. 19.
Em alguns livros, Hellinger se referia ao sistema familiar como uma “alma coletiva”. (Por exemplo, no livro: Bert Hellinger, A cura, Editora Atman, 2014, p. 16-18; 1ª Ed. em alemão 2011).
“‘Sistema’ significa aqui uma comunidade de pessoas unidas pelo destino, através de várias gerações, cujos membros podem ser inconscientemente envolvidos no destino de outros membros. Reconhece-se a amplitude do sistema pela amplitude dos destinos que provocam tais envolvimentos.” Bert Hellinger, Ordens do amor, Cultrix, 2007, p. 90. (1ª Ed. em alemão 2001).
Ter uma visão sistêmica significa ampliar nossa compreensão da realidade, bem como vislumbrar um âmbito mais amplo do nosso próprio ser. “O enfoque sistêmico nos mostra que, além de possuir identidade individual, fazemos parte de um coletivo maior. Estamos todos inseridos em uma mente comum maior: uma ‘alma familiar’”. Joan Garriga Bacardí, Onde estão as moedas, Editora Saberes, 2011, p. 23. (1ª Ed. em espanhol 2006).
“Todos nós nascemos no interior de uma alma coletiva, em um campo espiritual, que partilhamos com os membros de nossa família. Essa alma vai além dos limites de nosso corpo, ligando-nos de forma profunda a todos os que pertencem a ela.” Bert Hellinger, A cura… p. 16.
“Mas, o que é a alma? Creio que, em primeiro lugar, precisamos nos despedir da ideia ocidental de que o ser humano tem uma alma. Uma alma pessoal que lhe pertence e que ele vela pela sua salvação, por assim dizer, que está aprisionada no seu corpo e que almeja, mais tarde, a imortalidade. Essa é a ideia ocidental que remonta a Platão.
As experiências que se mostram nas constelações familiares são bem outras. Mostram que participamos de uma grande alma, isto é, que não temos uma alma, mas que estamos numa alma. Essa alma maior ou, aliás, a alma mostra-se em duas funções. Como a primeira função, une algo a um todo, por exemplo, une tudo o que está em nosso corpo a uma unidade. Assim, pertence ao corpo como princípio unificador. Como segunda função, a alma dirige. Conduz nosso corpo e nossa vida. Como, não sabemos. É, portanto, um princípio condutor, algo que une e algo que conduz.” Bert Hellinger, A fonte não precisa perguntar pelo caminho, Editora Atman, 2012, p. 49. (1ª Ed. em alemão 2002).
Consciência arcaica
Hellinger observou que o vínculo entre as pessoas, nessas almas coletivas ou sistemas familiares, tem uma lógica no seu funcionamento – ou seja, existe um tipo de “consciência” que une e orienta os sistemas familiares, que Hellinger chamou de consciência arcaica. A consciência arcaica era desconhecida por nós, até que Hellinger observou os vínculos que unem os membros de uma família e conseguiu explicar que esses vínculos funcionam de acordo com determinadas “leis”, “ordens” ou “forças”: trata-se das ordens do amor ou forças do amor, que vamos ver em um artigo específico.
“Há também uma consciência oculta, uma consciência arcaica coletiva. Essa consciência segue leis diferentes da consciência [moral] que sentimos. Essa consciência é a consciência do grupo. Essa consciência faz com que tudo no grupo e na família, no sentido amplo, tenha a sua ordem.” Bert Hellinger, Olhando para a alma das crianças, Atman, 2016, p. 97.
O mais importante sobre as ordens ou forças do amor é que elas conduzem os sistemas de modo a manter a coesão do sistema – ou seja, a consciência arcaica não tolera exclusões – e, ao mesmo tempo, os mais antigos no sistema transmitem a vida aos mais novos – ou seja, os diferentes intercâmbios, quando equilibrados, movimentam os sistemas adiante, um movimento de amor e mais vida, como nos explica Brigitte Champetier de Ribes.
“Os sistemas estão animados por duas forças complementares, fenômeno que se convencionou chamar “homeodinamimo”. O sistema tem uma meta, um movimento para frente, ao mesmo tempo que necessita manter o pertencimento de todos seus membros. As forças do amor dirigem esse duplo movimento: o controle do pertencimento de todos e um movimento para mais vida”. Brigitte Champetier de Ribes, Los desafíos de la vida actual. Gaia Ediciones, 2020, p. 14.
O sistema mais importante: sistema familiar
O sistema mais importante para cada indivíduo, que serve de base para os padrões de relacionamento em todos os demais sistemas, é o sistema familiar.
Não existimos apenas como indivíduos, o individualismo puro é como uma ilusão de ótica. As constelações familiares mostram – sobretudo pelos seus efeitos na vida prática – que integramos um sistema familiar, influenciamos e somos influenciados de maneira muito objetiva. Ao mesmo tempo, como um fractal, representamos em nós mesmos o sistema todo, refletido em nossas limitações, fracassos e doenças, mas também em nossas habilidades, talentos e conquistas.
A primeira relação mais importante para cada um de nós é a relação com os nossos pais.
“A segunda relação importante para nós começa ao mesmo tempo que nossa relação com nossos pais, pois não pertencemos apenas a nossos pais, mas também à nossa rede familiar. Junto com nossos pais, temos também suas famílias, e a partir desse momento fazemos parte de uma rede familiar na qual se unem as famílias do pai e da mãe. Uma rede familiar funciona como se estivesse unida por uma força que vincula todos os seus membros e por um sentido de ordem e equilíbrio que opera da mesma maneira em todos os seus membros. Quem esta força liga e quem este sentido leva em conta, também faz parte da rede familiar. E quem já não está ligado por esta força, e quem já não leva em conta este sentido, não faz parte da rede familiar. Assim, a abrangência dessa força e desse sentido permite deduzir quem faz parte da rede familiar.” Bert Hellinger, El amor del espíritu: un estado del ser, Rigden-Institut Gestalt Editorial, 2009, p. 40. (Tradução própria).
Quem integra o sistema familiar
Bert Hellinger lista quem pertence ao sistema – em diferentes livros, de maneira às vezes mais detalhada, às vezes mais resumida. (Só para mencionar alguns livros: Ordens do amor… p. 90-91, A fonte não precisa perguntar pelo caminho… p. 213-214; El amor del espíritu… p. 59-60; A cura… p. 18.)
Em seguida, cito um trecho esclarecedor do livro “A fonte não precisa perguntar pelo caminho”, e complemento com alguns insertos de outros livros, explicando quem pertence ao sistema familiar:
“Aqui atua mais do que um campo de força. Aqui atua uma alma em comum, que não somente une os vivos, mas também os membros falecidos da família. Essa alma envolve somente certos membros da família e vemos, pelo alcance de sua ação, quais os membros que abarca e são colocados a seu serviço. Começando com os últimos, são eles:
1. os filhos, inclusive os natimortos e falecidos (No livro Bert Hellinger, A cura… p. 18, complementa: mesmo os não nascidos ou falecidos precocemente. E também um gêmeo que tenha sido separado de nós ainda no útero materno).
2. os pais e seus irmãos (e meio-irmãos, inclusive os prematuramente falecidos e os natimortos. Bert Hellinger, Ordens do amor… p. 91)
3. os avós, (e mais raramente, algum irmão ou meio-irmão dos mesmos. Isso porém é raro. Bert Hellinger, Ordens do amor… p. 91)
4. às vezes ainda um ou outro dos bisavós e até antepassados ainda mais longínquos.
Dentre os familiares e antepassados, Hellinger explica que “são especialmente importantes as pessoas que tiveram um destino funesto ou foram lesadas por membros do sistema – por exemplo, em assuntos de herança – ou que foram excluídas, dadas a terceiros, desprezadas ou esquecidas.” Bert Hellinger, Ordens do amor… p. 91.
5. todos – e isso é especialmente significativo -, que cederam lugar em benefício dos membros citados até agora, principalmente parceiros anteriores dos pais ou dos avós, e todos que através de sua desventura ou morte fizeram com que a família tivesse vantagem ou benefícios (Todos aqueles cuja perda ou morte ocasionou uma vantagem para nós e nossa família, como, por exemplo, uma herança. Bert Hellinger, A cura… p .18).
6. As vítimas de violência ou assassinato através de antigos membros dessa família.” Bert Hellinger, A fonte não precisa perguntar pelo caminho… p. 213-214. (Todos aqueles cuja morte foi causada por culpa de um membro de nossa família. Todos aqueles que possuem culpa com relação à morte de algum membro de nossa família ou causaram danos graves a alguém de nossa família. Bert Hellinger, A cura… p. 18).
“Alguns consideram especialmente importantes para o sistema pessoas que conviveram com a família, por exemplo, alguma avó ou tia. Contudo, no caso de emaranhamentos, a proximidade física, por si só, não tem importância. Inversamente, muitas vezes alguém é enredado no destino de outra pessoa cuja existência até mesmo ignora.” Bert Hellinger, Ordens do amor… p. 91.
Integrantes do sistema familiar que não são familiares consanguíneos
Os itens 5 e 6 descritos acima tratam de pessoas que integram o sistema familiar mas não são consanguíneos. Isso é claramente perceptível nas constelações: a influência que essas pessoas têm sobre os demais membros do sistema. Ao mesmo tempo, observamos os efeitos benéficos, sobre todo o sistema, quando essas pessoas são respeitadas, reconhecidas, agradecidas. Seguem alguns exemplos, com observações valiosas de Hellinger:
“Em constelações com descendentes de pessoas que acumularam grandes riquezas, chamou-me a atenção que os netos e bisnetos tinham maus destinos, que não eram compreensíveis somente a partir do acontecimento no seio da família. Somente quando as vítimas, cuja morte ou desventura representaram o preço dessa riqueza, foram colocadas na constelação, veio à luz a extensão com que seus destinos continuavam a atuar nessas famílias.
Exemplos para isso eram trabalhadores que morreram na construção de uma linha férrea ou em sondagens de petróleo, sem que a sua contribuição para a riqueza e prosperidade de sua empresa tenha sido reconhecida.
Em muitas constelações com descendentes de assassinos, por exemplo, de membros da SS durante o Terceiro Reich, mostrou-se que os seus netos e bisnetos queriam deitar-se ao lado das vítimas e assim estavam extremamente ameaçados de suicídio.” Bert Hellinger, A fonte não precisa perguntar pelo caminho… p. 214.
Durante um curso no Brasil em 2001, Hellinger fez uma constelação na qual surgiu a questão da escravidão. Tratava-se da constelação de uma mulher cujo irmão era psicótico, e cujo bisavô teve muitos escravos. Hellinger colocou representantes para os escravos e para alguns membros da família. O irmão psicótico era único da família que sentia empatia pelos escravos, foi até eles, abraçou-os e queria pedir-lhes perdão. A exclusão dos escravos por essa família – pois os escravos não haviam sido vistos, respeitados, reconhecidos, nem pelos ancestrais, nem pelas gerações atuais – gerava uma imensa perturbação nesse sistema familiar. (Em psicoses, muitas vezes os pacientes são influenciados por algo muito duro de um passado remoto – muitas vezes, trata-se de um ou vários assassinatos.) Depois da constelação, Hellinger comentou:
“Agora imaginem mais um vez o que se passou aqui e o que significa, para muitos, que tenha havido escravos e o que fizeram com eles. – E que antes havia os índios e o que fizeram com eles. – E que isso não acabou, mas continua atuando, mas que existe a possibilidade de reconciliação, se o sofrimento dos escravos e dos índios for respeitado e se lhes mostrarmos a empatia que merecem.” Bert Hellinger, A paz começa na alma, Editora Atman, 2016, p. 161. (1 ed. 2003).
Completude x exclusão
Um sistema precisa estar completo, e isso gera a necessidade de um descendente representar um excluído anterior do sistema, como um esforço do sistema para que esse excluído não seja esquecido, não permaneça excluído, mas que de alguma maneira volte a pertencer.
“Alguns são excluídos de um sistema por que se diz que não são dignos dele. Por exemplo, porque são jogadores, alcoólatras, homossexuais ou criminosos. Sempre que alguém é excluído e outros membros da família dizem ‘tenho maior direito de pertencer do que ele’, [ou, em outras palavras, pensa ‘sou melhor do que ele’], o sistema fica perturbado e, então, pressiona para o restabelecimento e reparação. Assim, aquele que foi excluído ou deixado de lado dessa maneira é representado mais tarde por um descendente, sem que esse perceba isso, ele se sente como o excluído, comporta-se como ele e, frequentemente, tem o mesmo destino”. Bert Hellinger, A fonte não precisa perguntar pelo caminho… p. 121-122
Podemos perceber o quanto é profundo entender o ser humano não apenas como indivíduo isolado, mas como parte de sistemas maiores, entender que estamos profundamente – e inevitavelmente – conectados uns com os outros. O vínculo com nossa família é constitutivo de quem nós somos, é predeterminado na nossa vida desde nossa concepção e não se extingue com o tempo.
“Aqui deve-se considerar que ninguém perde o direito ao pertencimento pela morte. Isso significa que, em um sistema familiar, os membros falecidos são tratados pela consciência da mesma forma que os membros vivos. Por sua morte, ninguém é separado de sua família.” Bert Hellinger, El amor del espíritu… p. 59. (Tradução própria)
Essa alma familiar que une inconscientemente todos os membros do sistema familiar é o vínculo mais importante para que uma pessoa possa viver e realizar-se. Ao longo da vida, podemos participar de muitos outros sistemas – no ambiente de estudo, trabalho, constituindo uma nova família e, portanto, novo sistema familiar, ou ainda participando de agremiações ou associações. No entanto, nossa relação com as outras pessoas, nos demais sistemas, sempre será um espelho das nossas relações no nosso sistema familiar – seja do que está em harmonia e equilíbrio, seja do que está em conflito e desequilibrado.
Isto é, para encontrar a harmonia e equilíbrio em todos os âmbitos da vida, o primeiro passo é olhar profundamente para o sistema familiar. À medida que integramos nosso sistema familiar com amor, expandimos nossa capacidade de pertencer e nos relacionar para muito além da família e de maneira harmoniosa e feliz.
“A alma vai também além da família, une-se com outros grupos e com o mundo como um todo. Aqui a alma mostra-se como a grande alma. Na grande alma os opostos se anulam, aqui não existem jovens e velhos, grandes e pequenos, vivos e mortos. Nela estão todos unidos.” Bert Hellinger, A fonte não precisa perguntar pelo caminho… p. 49.
Reunir o sistema em mim, incluir todos
“Formamos uma comunidade de destino juntamente com os indivíduos mencionados nesta seção. Partilhamos com eles uma alma coletiva, um campo espiritual em comum.
O que isso significa?
1. A sua exclusão de nosso amor faz com que um membro de nossa família passe a representá-los durante a sua vida, sem que tenha consciência disso. Por exemplo, através de uma doença ou de uma deficiência, mas também da forma que vivem e morrem.
2. A sua inclusão consciente à nossa família e à nossa alma coletiva libera nossos emaranhamentos em seus destinos, emaranhamentos que nos fazem adoecer, aliviando suas consequências.” Bert Hellinger, A cura… p.18-19.
“Quando cada um dos que pertencem à minha família, os vivos e os mortos, têm um lugar em meu coração, sinto-me perfeito. Enquanto somente um deles estiver excluído, sinto-me imperfeito. O curioso na perfeição é: quando todos estão reunidos em mim; sou livre.” Bert Hellinger, A fonte não precisa perguntar pelo caminho… p. 247
“Os sistemas são totalidades; e as pessoas, num sistema de relacionamento, só se sentem integradas quando o sistema inteiro está representado nelas.” Bert Hellinger, A simetria oculta do amor. Cultrix, 2014, p. 101. (1ª Ed. em alemão 1998).